sexta-feira, 29 de abril de 2011

Assimetrias simétricas de Burra

Assimetrias simétricas de Burra.
Angela Souza
Artista-pesquisadora de Dança

Burra, não é nada disso que você está pensando é o quinto espetáculo da Alysson Amâncio Cia de Dança, que tem na sua direção Alysson Amâncio, jovem coreógrafo que vem buscando desenvolver seu modo próprio de coreografar e construir obras de dança.

A dança cênica pode ser entendida como uma prática reflexiva de interesse sociocultural. Através dela, os criadores fazem comentários sobre suas vidas e experiências, usando o corpo para estabelecer modelos de interação e dar visibilidade a ideias, valores e símbolos, domínios de vivências individuais, sociais e da experiência cultural.

Nessa perspectiva, Amâncio vem produzindo suas obras com um núcleo expressivo sobre questões existenciais a partir de um eixo individual e cotidiano, a opressão, o bem e o mau, frustrações, sonhos, manipulação, entre outros.

 
No processo de construção de uma obra coreográfica, as motivações, inspiração, intenções criativas se apresentam de formas diversas, como textos, imagens, histórias, vivências cotidianas, sentimentos e emoções experimentadas que fomentam a investigação corporal e composição dramatúrgica da obra. Duas questões importantes se colocam: como transformar, traduzir essas motivações expressivas em
obra coreográfica.

Segundo, ao longo do processo investigativo criativo, como ler e avaliar os materiais gerados e perceber nas relações intertextuais a liderança de um sentido.

Nas discussões sobre a criação artística é recorrente a ideia de que a obra de arte tem uma autonomia, que em seu processo de feitura emerge uma direção e sentidos.
Deste modo, como perceber a passagem do sensível para o inteligível na obra.

O release, publicado no website da companhia, fala da imaturidade da juventude e do posicionamento individual perante o coletivo. Na versão do release apresentado no Palco Cariri Dança, o texto se resumi ao entorno do individuo e da manipulação.
Podemos observar esses releases como vestígios do processo criativo de Amâncio, que indicam uma tentativa de focar os sentidos da obra. Todavia, olhemos para obra, Burra, perscrutando as direções que lá estão, as articulações dos elementos presentes na cena e a coerência gerada.

A apresentação começa com dançarinos movendo-se lentamente, espalhados pela penumbra do palco. Na platéia acontece um burburinho, uma mulher fala despreocupadamente ao celular, pessoas sussurram, trocam de lugar, pedem silêncio, ouve-se psius. Alguns segundos passados nessa atmosfera de ambigüidade, a mulher do celular levanta discretamente e se dirige para o palco. Blackout, simultaneamente, as luzes acendem, toca a música, e os dançarinos dançam em uníssono.

Os primeiros minutos suscitam uma dubiedade sobre o início ou não do espetáculo. A penumbra, os dançarinos que até podem estar se aquecendo, os burburinhos da platéia, a mulher ao celular e quando as luzes são acesas, fica aquela sensação de não ser exatamente aquilo que parecia. Em vários outros momentos o espetáculo apresenta esse estranhamento com a ambigüidade do sentindo, enfim não
é nada disso que você está pensando.

A ambigüidade vai sendo construída com a articulação de corporalidades e vários elementos de teatralidade, textos, personagens e músicas, todos, a serviço da mecânica narrativa. Os textos de Amâncio e do dramaturgo Eugène Ionesco, trecho do “O rinoceronte”; apresentam um aspecto existencial e do enquadramento social, do obsurdo entre ser o que se é ou o que querem que sejamos, remetendo a relação individuo e coletividade, provocando ambigüidades, paradoxos, sufocamento,
inadequação.

A música é usada como elemento organizador do fluxo e das estruturas rítmicas do movimento e pelo conteúdo semântico das letras. Movimentos jogados, saltitados, desarticulados, assimetrias simétricas, instaurando uma corporalidade leve, angular e fluente.

O conteúdo semântico das letras é explorado nas canções de duplo sentido, tão presentes na música popular, em articulações com movimentos e gestos que reforçam essa dubiedade, como na dança desengonçada de mamulengos da Melô do Tchan, ou do mímica do grupo de vilões que toca e dubla na Boquinha da Garrafa, suscitando um discrepância entre imagem e conteúdo da música. Seguem-se mais
algumas músicas (O bonde do Tigrão, Não é nada disso e Rebolation) sobre as quais os dançarinos parodiam as “coreografias”, concluindo com um pou pourri dos refrões, que culmina na repetição renitente de “não é nada disso que você está pensando” e os dançarinos de mãos na cabeça ou nas orelhas em movimentos robóticos. A cena suscita diversas intenções expressivas além da dubiedade, como
também uma crítica à cultura de massa e a manipulação estética e social que ela engendra.

Observa-se que o jogo com duplos significados vai sendo desfiado ao longo da obra desde seu nome, gerando uma linha de coesão dramatúrgica, como momentos de dúvidas, inadequação, ironia, humor. Contudo, apresentam-se outras linhas de sentido, outros aspectos expressivos na obra, alguns que colaboram com essa coesão  e outros nem tanto.

No aspecto performático, podemos observar uma apropriação e conexão dos dançarinos com os discursos cinéticos e expressivos da obra, a companhia atua de modo integrado denotando uma maturidade do trabalho em grupo.
Burra é um indicio de como Amâncio e a companhia, ao longo de sua produção em dança, vêm experimentando e afinando a articulação de elementos de teatralidade com um desenvolvimento duma corporalidade singular e própria.
 
Pra concluir, gostaria de prescrever a recepção do leitor a esse texto, leia-o como a tentativa de ser um espelho diante da obra, que a reverbera e reflete, no qual o criador pode ver o que criou e decidir se é aquilo mesmo que pretendia e daquele modo. Ou talvez, não é nada disso que estamos pensando.

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